Silenciosos

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O dever e o haver

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. Texto escrito por Pedro Rolo Duarte, mas subscrevo tudo. 

- Tudo bem?, perguntei.
- Tudo bem?!, respondeu ela. Achas mesmo que está tudo bem? O c***** do meu ex-marido, por acaso teu amigo, bla bla bla, fiquei desempregada e bla bla bla, a tua amiguinha X é a maior f*** da p*** que existe, tudo bem? Olha, digo-te mais...
No meio da rua, num dos raros dias de sol da Primavera apenas anunciada, senti-me subitamente um saco de boxe golpeado de um lado e do outro, sem intervalos, sem ok’s nem ko’s. Apenas um desgraçado saco de boxe. Quando o desabafo destemperado chegou ao fim, estava arrasado. Cansado. Doente. A minha interlocutora sorriu e deixou um “temos de tomar um café um dia destes...”. E seguiu o seu caminho. Eu fiquei a tentar recuperar os sentidos, mergulhado em má energia, em agressividade gratuita, e a interrogar-me sobre por que raio teria sido eu a vítima de uma onda de indignação que não me dizia respeito.
É uma reflexão que se vai arrastando atrás de mim: a das pessoas que nos rodeiam, familiares ou amigos, ou mesmo amores, e se distinguem, ao longo dos anos, entre as que dão e recebem, as que apenas dão, as que nos sugam sem dó nem piedade, as que nos usam (e na desilusão, perdemos...). De todas, as piores talvez sejam estas, as que fazem de nós o saco de boxe das suas existências e depois, limpas de toda a revolta e indignação que lhes vai na alma, seguem o seu caminho (não, como cantava o Rui Veloso, “com a merda na algibeira”, mas deixando, sem pena nem remorso, a dita dentro de nós).
Perdemos demasiado tempo com quem nos é tão pouco. E o verbo não está errado: os amigos são, do verbo ser. Não estão, do verbo estar. Os amigos dão e recebem, livremente, mas não cobram nem devem. Não é nosso amigo quem nos usa como saco de boxe, deixando-nos no colo a carga negativa de uma vida, e depois vira costas leve e ligeiramente. É nosso amigo quem usa e abusa de nós num desabafo, não numa descarga; numa conversa, não num discurso; numa partilha, não num imposto. Estou a escrever lugares-comuns, sei-o bem, mas tenho notado, em conversas, que vivemos tempos radicais – amar e odiar, querer tudo ou nada, extremar o discurso nas relações (em todas as relações) como se caminhássemos, em guerra, para o juízo final. Acredito que a crise, a preocupação que vive em cada um de nós, empole reacções e sentimentos – mas não alinho nessa maré viva que tudo confunde e baralha. E leva quando a maré baixa.
Já vi amigos desavindos por causa de um emprego, ou de uma divergência política - e isso fez-me regressar a 1975, quando vi os meus pais perderem amigos pela mais estúpida das razões: desacordo ideológico quanto ao rumo de Portugal. A minha mãe recorda com frequência algumas dessas amizades perdidas – ou pelo menos congeladas – na sequência da revolução de 1974. Quando conta esses episódios, não consigo deixar de pensar no ridículo que pode constituir o corte de relações entre amigos de sempre porque uns optaram pela esquerda, e outros pela direita. Visto à distância, é tão absurdo que se torna incompreensível.
Na verdade, vejo nos dias que correm sintomas de uma estranha repetição dos factos. Das asneiras. E noto que esses sintomas decorrem dessa estranha mania que faz de muitos de nós sacos de boxes das frustrações, infelicidades, depressões alheias. Na confusão, perde-se a dimensão do que está em causa. Somos amigos, ou irmãos, ou mesmo namorados – mas não somos sacos de boxe nem fardos de palha para alimentar animais.

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